terça-feira, 21 de maio de 2013

A FLEXIBILIDADE DA PERCEPÇÃO COMO POSSÍVEL FERRAMENTA DE ANÁLISE HOLÍSTICA.

Hellen Katiuscia de Sá




Resumo: este artigo é uma introdução, onde propomos demonstrar a utilização de uma abordagem pedagógica empregada em Educação Somática – a flexibilidade da percepção – como possível ferramenta de analise holística de objetos artísticos cujo suporte é proveniente fora do âmbito físico-corporal, comumente abordado em Educação Somática. O objeto de analise escolhido para este exemplo foi o movimento cinematográfico Nouvelle Vague francesa.


Palavras-Chave: Pensamento Somático; Nouvelle Vague; Cinema;


Primeiramente faremos um pequeno apanhado de quando, como e porque surgiram os métodos de Educação Somática, que mais tarde tornaram-se um viés para solucionar insatisfações de bailarinos, coreógrafos, atores e diretores teatrais acerca de seu oficio enquanto artistas da cena.
O termo Educação Somática é relativamente recente; a expressão surgiu oficialmente pela primeira vez no artigo de Thomas Hanna numa publicação de 1983 da revista cientifica norte-americana Somatics, onde no mesmo artigo seu autor sugere uma definição para essas praticas tendo a arte e a ciência de mãos dadas para o mesmo fim: explorar e aceitar as relações subjetivas internas do sujeito (pensamentos e sentimentos) onde a consciência, o biológico e o meio-ambiente contribuem em conjunto para a assimilação de dados relevantes para construção do saber através do autoconhecimento, para esta abordagem a Educação Somática sinaliza ‘o corpo enquanto experiência’:

[...] corpo físico, ligado à psique, à alma, ao espirito e submetido a regras sociais e culturais. O corpo do qual provem e se expressam as sensações, é a um só tempo físico, psíquico, cultural, social e tem como modelo o corpo do outro. Culturalmente, o corpo é símbolo e signo, portador de mensagens, de atos físicos e psíquicos. Como produto social e paradigma de praticas culturais, nele a sociedade constrói significados e espelha-se.(SIQUEIRA, 2006, p. 59 apud PINTO, 2012, p.13)

Ainda que a expressão Educação Somática tenha sido mencionada em meados de 1983, há registros de anotações de pesquisadores autodidatas e artistas da cena que datam de antes da Primeira Guerra Mundial, e estas anotações formam os pilares dos princípios fundadores das abordagens em Educação Somática utilizadas ainda nos dias atuais. E há algo em comum nessas anotações. Em todas as abordagens inovadoras verifica-se que o ser humano é sempre assimilado e trabalhado como um Ser Total (o corpo material é indissociável da consciência), ou seja, leva-se em consideração a existência física, mental e espiritual do individuo como um todo, para absorção e construção do [auto]conhecimento.
Embora a aceitação do Ser Total nas abordagens dos exercícios em Educação Somática seja realidade, essa vertente não está atrelada a nenhuma corrente filosófica ou sistema religioso como o Hinduísmo, Vedanta, Taoísmo e/ou outra manifestação que abraça a concepção inseparável dos corpos material, espiritual e mental como expressão completa do ser humano.
Podemos citar alguns nomes dos “reformadores do movimento” – termo utilizado por Márcia Strazaccappa, aos que trouxeram à luz os fundamentos para os exercícios, estudos e abordagens somáticas. Esses reformadores jogaram-se no mar de possibilidades exploratórias do movimento, cujo estopim foi a busca da cura para suas enfermidades não contempladas pela medicina tradicional da época; como é o exemplo do alemão Joseph Pilates; do ator Mathias Alexander; Moshe Feldenkrais, dentre tantos. Todavia, reformadores mais recentes do movimento, não necessariamente foram guiados pela necessidade de superar alguma limitação psicofísica, mas acrescentaram novos dados baseados na experiência, àqueles já existentes.
O fato é que por meio de resultados positivos e satisfatórios através de tentativas concretas provenientes de exercícios corporais combinados com experiências sensoriais, surgiram dados empíricos que hoje servem como base para o pensamento fundador da unificação corpo/espirito importante e presente nas abordagens pedagógicas da Educação Somática; sendo que essas abordagens posteriormente e de modo gradativo, começaram a ser utilizadas por pessoas ligadas às Artes Cênicas (dança e teatro) em companhias de teatro e/ou dança contemporânea, na busca de maior expressividade dos artistas da cena, por exigências às novas linguagens na dança e/ou teatro na modernidade.
Tais exercícios de Educação Somática utilizados nas Artes Cênicas inauguram uma transformação na pedagogia da dança (principalmente), abrindo espaços para uma pedagogia “ativa”, exploratória, em oposição à uma ordem pedagógica clássica, rígida orientada apenas pelo modelo e pela forma mecanicista. Os exercícios somáticos dão abertura agora à valorização do SENTIR ao que se refere ao artista. Naturalmente essas abordagens pioneiras de se trabalhar o individuo influenciaram no repasse pedagógico dentro das faculdades de Cênicas, cujo material de estudo vêm interferindo beneficamente também nas áreas de Educação, Ensino e Saúde.
Ressaltando que os métodos propostos pela Educação Somática utilizam técnicas variadas, entretanto um eixo em comum nessa diversidade de abordagens é proporcionar ao individuo experiências que o estimulem à propriocepção e auto-regulação dos movimentos. Essas técnicas visam trabalhar não somente o aspecto material da pessoa, pois através da consciência corporal do individuo, o mesmo exercita e dilata sua tecnologia interna (acionando os corpos sensorial e mental) resultando ao praticante percepções mais aguçadas de si mesmo através de uma orientação holística interna, estendendo-se estas percepções de autoconhecimento para o ‘exterior’ através de seus atos, ou seja, para o meio ambiente onde o individuo vive e se relaciona.
Buscando embasamento na obra do filosofo Merleau-Ponty: Fenomenologia da Percepção, encontramos a compreensão do conceito de “corpo enquanto experiência”, de acordo com o que se propõe os exercícios de Educação Somática, correspondendo à necessidade de se trabalhar o Ser em sua totalidade holística, como explica a pesquisadora Débora Bolsanello:

A partir da mudança de paradigma estabelecido pelo pós-Positivismo e do questionamento epistemológico inaugurado pela Fenomenologia, a experiência humana e a subjetividade passam a ser validadas como fonte de conhecimento. Para os profissionais da área de Educação Somática, não é o corpo da pessoa que é abordado, mas a sua experiência através do corpo. Para tanto, o professor de Educação Somática utiliza as seguintes estratégias pedagógicas: a sensibilização da pele, o aprendizado pela vivência e a flexibilidade da percepção. (BOLSANELLO, 2005, p.98).

O que nos interessa de imediato aqui, é compreender a flexibilidade da percepção como abordagem pedagógica acionada no individuo através dos exercícios de Educação Somática. Senão vejamos: a execução das abordagens somáticas em sua prática acontece, sobretudo, por meio da doxa, cujo repasse das orientações orais norteia os indivíduos durante o desempenho dos exercícios somáticos; de modo que todo conhecimento empírico com registros escritos ainda são relativamente poucos, se comparados à aplicabilidade transversal dos exercícios somáticos às diversas áreas do conhecimento psicofísico. Esses registros funcionam mais a titulo de apontamentos técnicos e/ou como dados de pesquisa de campo para um desdobramento epistemológico sobre o tema, pois como na área da Educação Somática o conhecimento é atravessado pela ideia fundamental do ‘corpo teórico’ e/ou do ‘corpo enquanto experiência’, por onde a percepção do individuo é tecida, armazenada e posta para fora de maneira empírica, é desse modo que acontece o alcance maior dos exercícios físicos no corpo mental e espiritual do sujeito (caminho que aciona a flexibilidade da percepção), ou seja, por meio estritamente da práxis e da doxa.
A permanência da doxa ao longo dos anos se deve à sua extrema maleabilidade e capacidade de se modelar conforme o discurso de seus fazedores coletivos e deles anexarem falas outras à doxa. As opiniões da doxa se adaptam às circunstancias, e elas não advêm de uma instituição (tipo universidades e/ou escolas). Não são estudadas em livros. A doxa é repassada como um rumor perceptível apenas pela via sensível de ouvidos aptos para ouvir o ‘imperceptível’, algo como um “SENTIR O CONHECIMENTO” – uma paixão, onde somente o apaixonado é capaz de alcançar suas palavras...

Veremos assim, em relação ao que nos diz respeito – a atividade artística –, a doxa adaptar-se às novas condições da prática da arte, mesmo que pouco a pouco e com certo atraso em relação à própria pratica. (...) O trabalho da doxa é visto a partir de então como trabalho de coesão social; ela oferece a todos sua trama bem tecida, sem exceção, e esses ‘lugares’ apresentados por ela ao entendimento de todos nos tornam capazes de nos entendermos uns com os outros. (CAUQUELIN, 2005, p.163, 164).

Desse modo a relação entre as conexões de ideias e compreensões do individuo percebidas através do estimulo corporal estendem-se para além do físico, justamente devido ao exercício corpóreo acionar esses ‘lugares secretos’ da subjetividade do sujeito proporcionando a flexibilidade da percepção (espacial, interna e externa), o qual permite à pessoa traçar conexões de entendimentos profundos sobre os acontecimentos cotidianos, e dessa transversalidade de compreensões e conexões de ideias, o individuo alarga seu olhar perante os fatos e dados da conjuntura interior e exterior ao seu corpo (Soma), fazendo o sujeito alcançar que os fatos sociais interferem consigo de maneiras outras.
A flexibilidade da percepção então convida o individuo a enxergar e tecer juízos de maneira holística, ou seja, abre formas de avaliar os fatos levando em consideração a maioria dos lados em questão, para poder chegar a uma conclusão mais satisfatória que contemple uma gama maior de dados relacionados. Através do estimulo de sua tecnologia interna (percepção espacial; de equilíbrio; sensibilidade auditiva, olfativa, tátil; pensamento e imaginação) o sujeito instiga suas conexões de pensamento e análise, culminando na dilatação do entendimento e capacidade de interligar fatos gerais através da aceitação de que seu próprio Ser Total integra-se na Natureza como sendo um dos elementos componente dessa Natureza maior, ou seja, o sujeito torna-se mais responsável por suas ações e escolhas, pois não age apenas para si, mas para todo seu entorno social.
Assim a flexibilidade da percepção estimula o individuo compreender que ele tem uma natureza interna (a sua ‘verdade’) que deve se relacionar com o exterior de si verdadeiramente. Entretanto a pessoa necessita trabalhar para tornar real e ativa esta ‘verdade’, pois através da harmonia entre seus corpos (mental/emocional, espiritual e físico), ele pode externar quem de fato é, para que serve, para que veio ao mundo, para exercer a sua função em sociedade. Ele não se afasta de si mesmo e não se deixa alienar pelas seduções artificiais provenientes dos esquemas consumistas do Capitalismo, ou pelos discursos da política dominante, por exemplo.

Do neoplatonismo, a doxa mantém a ideia de que a arte participa do Ser e do Um, que seu valor é o mesmo concedido à alma, e que ao celebrar a arte, está se celebrando a Natureza e Deus. E também que a natureza constitui ao mesmo tempo o valor a respeitar e o objetivo a perseguir (é preciso trabalhar para ser natural); é sabido que a natureza (o dom) sem trabalho não vale nada, mas paralelamente, a doxa nos diz que o trabalho sem o natural é da mesma maneira nulo. A natureza indica o bom sentido, o caminho a seguir, ela é um dos principais lugares-comuns da doxa, mesmo e sobretudo, que não se consiga defini-la. (CAUQUELIN, 2005, p.168).

Partindo dessa premissa, de que a flexibilidade da percepção traz o individuo para perto da expressão de seu Ser Total – a sua ‘verdade’, a sua aptidão natural, (e por consequência tudo o que ele produzir norteado por esta consciência irá resultar a essência nas coisas produzidas, além é claro, de permiti-lo detectar o que está fora de seus lugares e enxergar paradoxalmente os caminhos que podem harmonizar as partes constituintes no Todo no seu universo cotidiano). A pessoa torna-se apta a inverter a ordem dos fatores dessa coesão que emerge através da ‘verdade’ das coisas – e tratamos aqui do dinâmico ‘jogo estético’ que pode, deve e está sendo jogado pelos sujeitos em sociedade a todo o momento; com a diferença que uns (mais que outros), percebem essa relação de liberdade expressiva genuína. O jogo estético confere a ATIVIDADE FORMADORA DO SUJEITO, que ordena através da matéria sensível, impregnada de sentimento, a própria Natureza da qual se desprendeu. E agindo consciente de si e de seus atos e de sua condição de ‘estar no mundo’, o sujeito transcende.

Para Schiller, o impulso lúdico se exerce acima das necessidades naturais da vida e independente dos interesses práticos. É uma manifestação de ordem espiritual, que se apresenta sobretudo como jogo estético. Sua função é conciliar a matéria, presente aos sentidos, com a forma, ato do pensamento, que parece excluir o que é material e sensível. O impulso lúdico joga com a Beleza, que Schiller define como forma ativa. A Beleza surge como convergência do subjetivo com o objetivo, do sentimento com a forma, que esse impulso determina. Força eminentemente livre, o jogo estético neutraliza tanto o rigor das formas abstratas, produzidas pelo intelecto, quanto a imediatilidade das sensações passageiras, e, “dando forma à matéria e realidade à forma”, liberta o homem do jugo da Natureza exterior e das exigências racionais exclusivistas. Por aí se vê que o jogo estético é uma afirmação do espirito, que pressupõe a liberdade. De fato, é preciso que o homem já tenha conquistado um alto grau de autonomia espiritual para jogar com a matéria e com a forma. (NUNES, 2006, p. 55).

Como sugere a filósofa, teórica e artista Anne Cauquelin em passagem em seu livro Teorias da Arte, o aspecto da ‘essência’, seja na obra de arte seja em qualquer outa coisa, dá-se através pela busca da Verdade, pois esta é a revelação do Bem e do Belo,  e se ‘belo’ é ser ‘bom’ e ser ‘verdadeiro’ em sua essência. Assim, partindo do raciocínio holístico, análogo ao proposto pela flexibilidade da percepção, cuja analise não descarta nenhuma hipótese para se chegar à conclusão, quando falamos da reviravolta que o cinema mundial viu e impactou-se através do movimento da Nouvelle Vague francesa, entramos no campo desta subversão da ordem de valores estéticos, culturais, econômicos e políticos.
         Conforme a flexibilidade da percepção nos convida a observar a maioria dos lados da questão para se chegar a uma conclusão mais abrangente (e para este proceder especifico eu chamo de ‘pensamento somático’), vamos tecer hipóteses sobre o porquê de jovens críticos de cinema, (que a principio não eram nem cineastas), subverteram a ordem das regras estéticas do audiovisual, culminando no movimento Nouvelle Vague.
Retomando a questão sobre a essência de que todo produto artístico para ser considerado verdadeiramente ‘arte’, tal fruto deve obedecer a um conjunto de regras para sua produção, e assim espelhar sua ‘verdade’, Partiremos desta primeira hipótese: o incomodo maior que os idealizadores da Nouvelle Vague francesa sentiram ao assistirem os filmes franceses da década de 1950.
Este grupo era formado por  jovens teóricos, críticos, pensadores e profundos estudiosos da história do cinema e de sua respectiva linguagem, portanto capazes de detectar esta falta de ‘verdade’ dentro do jogo estético dos filmes  produzidos em meados da década de 1950. Era como se a linguagem do cinema estivesse estagnada às formulas artesanais desde à época de seu nascimento. Jean-Luc Godard, Alain Resnais, André Bazin,  François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette e Eric Rohme – “Os Jovens Turcos”, como também eram apelidados pela mídia da época, externaram sua insatisfação com este descompasso estético dissociado de forma, conteúdo político e poético nos filmes na atualidade da década em que viviam. Primeiro gritou-se o manifesto de François Truffaut intitulado “Política dos Autores”; depois de um tempo, alguns rapazes do grupo arregaçaram as mangas e partiram para experimentos totalmente livres, subvertendo os paradigmas que regiam as regras (até então) que validavam o jogo estético do audiovisual.
Os idealizadores do movimento Nouvelle Vague queriam ressuscitar essa ‘verdade’ da linguagem cinematográfica. Seguindo o raciocínio das Teorias Injuntivas, que explica que para o objeto produzido ser considerado ‘arte’, ele dispõe de uma serie de regras para tornar-se verdadeiro dentro de uma premissa artística; podemos intuir que quando os Jovens Turcos se propuseram a subverter as regras da produção audiovisual em prol da evolução da linguagem cinematográfica através do que se intitulou como Nouvelle Vague francesa, eles automaticamente introduziram novos dados dentro do processo criativo no cinema, e por isso mesmo sugerem outro caminho para a ‘verdade’ do produto artístico audiovisual ser alcançada, posto que a Arte é algo subjetivo susceptível de regras dinâmicas, como explica Anne Cauquelin:

A arte é então ‘uma disposição de produzir (poiésis) acompanhada de regras’. Produzir é trazer à existência uma das coisas que são suscetíveis de ser ou de não ser e cujo principio de existência reside no artista. Nessa ótica uma produção é julgada por sua conformidade às regras ‘verdadeiras’ que foram seguidas. Caso tenha seguido as regras falsas terá falhado. O que importa ao teórico da arte é, então, enunciar essas regras  verdadeiras e, diante disso, avaliar os meios e a matéria da produção de acordo com os fins que ela se dispõe a alcançar. Daí o interesse em classificar os fins e ver como se articulam os gêneros e as espécies. (CAUQUELIN, 2005, p.59-60).

Nesse raciocínio, há farta literatura de teorias sobre a Arte, as quais expressam que o produto artístico nasce mediante regras inerentes ao seu processo de produção, para ser reconhecida como tal; regras estas detectadas e validadas pelos teóricos de arte ao longo da historia da civilização humana, porém vale lembrar que por tratar-se de uma produção mimética, a produção artística naturalmente adere em seu processo de realização fatores dinâmicos, abertos a novos canais expressivos inerentes à subjetividade do artista, e essa produção é alcançada através de erros e tentativas, ou seja, através também de uma pitada proveniente da práxis.

Se termos em mente que toda arte é produção acompanhada de regras, compreenderemos de imediato que mimesis não é cópia de um modelo, pálido decalque da ideia, afastada da verdade em muitos graus, como era o caso para Platão. Ela é antes de tudo fabricadora, afirmativa, autônoma. Se ela repete ou imita, o que repete não é objeto, mas um processo: a mimesis produz do mesmo modo como a natureza produz, com meios análogos, com vista a dar existência a um objeto ou a um ser; a diferença se deve ao fato de que esse objeto será um artefato, que esse ser será um ser de ficção. (...) O produto de ficção é tão real quanto o gerado pela natureza, apenas não pode ser avaliado de acordo com os mesmos critérios. Para a natureza, os seres que ela produz são como eles são: ele sabe o que faz, e o faz bem, suas regras de produção são imanentes (mesmo que aconteçam vez por outra, muito raramente, erros de programação – por exemplo, monstros por falta ou por excesso). Não acontece a mesma coisa com os seres de ficção; o que é o processo interior na natureza, está no artefato, submetido à exterioridade e, portanto, à contingencia. (CAUQUELIN, 2005, p.61-62).
           
Para se compreender como esse salto evolutivo da linguagem cinematográfica emergiu através do movimento Nouvelle Vague, invocamos a AUTONOMIA DA ARTE, que é a faculdade que dispõe a arte de não apenas romper com as outras espécies de discursos da razão (o que a autonomia promete), como ainda tornar ineficaz o funcionamento desses discursos.

[...] a obra ‘em si’ não existe realmente; ela se diz ‘obra’ por meio e com a condição de ser posta em determinada forma, de ser posta em ‘sítio’. Fora do sítio, que a teoria construiu e que as teorizações mantêm vivo, ela não é nada. São necessárias essas mediações, todo esse trabalho tecido incansavelmente pelo comentário, para que seja reconhecida como obra. Pois nenhuma atividade – e a arte não escapa dessa condição – pode ser exercida fora de um sítio que lhe dê seus limites, determine os critérios de validade e regule os julgamentos que serão tecidos a seu respeito. (CAUQUELIN, 2005, p.21)

Agreguemos à falta de eficácia do jogo estético do cinema nos anos anteriores à explosão da Nouvelle Vague, outro possível dado relacionado ao surgimento deste movimento cinematográfico: a conjuntura política do período de 1950 na França, pois:

Quando se trata de um objeto de arte, o processo de reconhecimento deve levar em conta o contexto sociocultural e politico – auxiliar indispensável ao reconhecimento  efetivo de um objeto de arte enquanto tal –, e sua constituição em ‘símbolo’ deve muito ao lugar que esse objeto ocupa no sistema de trocas econômicas e culturais. (CAUQUELIN, 2005, p. 120).

Na esfera da compreensão do RELATIVISMO CULTURAL, toda manifestação criativa que traz referencia histórica e social de um povo é aceitável enquanto cultura dentro do universo das civilizações humana como um todo, onde os discursos obedecem e são compreendidos dentro de cada nicho cultural onde foram engendradas.
A importância dos signos – segundo investigações profundas de Pierre Bourdieu – engloba os valores materiais: de uso e de troca; e valores imateriais: simbólico e afetivo, estes valores são amplamente explorados no discurso cinematográfico da Nouvelle Vague francesa, anexando a esta expressão artística uma larga abrangência comunicativa ao publico que frequentou o cinema a fim de ver os filmes provenientes desse novo dialogo audiovisual. Muito embora, esses signos se apresentassem de maneira notoriamente inovadora, aparentemente desorientada e de certa forma dinâmica, exigindo de seu espectador novas maneiras de decodificar tais relações de compreensão linguística cognoscíveis, cujo publico não estava habituado (nem experimentado anteriormente tais conexões de compreensão do discurso audiovisual), e por isso mesmo os filmes nascidos sobre a alcunha da Nouvelle Vague geraram profundo estranhamento tanto no publico quanto da crítica especializada em meados de 1958, como a qualquer pessoa ainda hoje que contemple pela primeira vez esses discursos.
          Vale salientar que tais ‘quebras’ ou subversões das regras linguísticas em determinado discurso artístico é semelhante aos saltos evolutivos de espécies na Natureza. O surgimento da Nouvelle Vague no universo do audiovisual assemelha-se ao que se propõe o relativismo cultural que abraça (e interfere) igualmente o conjunto dos processos sociais de significação (e/ou) o conjunto de processos de produção, circulação e consumo da significação na vida social; portanto, admitem a existência dos discursos linguísticos explorados através da Arte, a partir do momento em que estes discursos dialogam em algum grau com seu receptor (o publico), seja no seu aspecto sensorial, seja no dinamismo comportamental.

        Por hora, estes foram os primeiros recortes tecidos utilizando a Flexibilidade da Percepção como ferramenta de análise holística, sobre alguns lados de questões que poderiam ter corroborados para a explosão criativa, que a história do Cinema conhece sob a alcunha de Nouvelle Vague.



Hellen Katiuscia de Sá
Escrito em: 18, 19, 20 e 21 de maio de 2013.

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Referencias:

BOLSANELLLO, Débora, A Educação Somática e os Conceitos de Descondicionamento Gestual,  Autenticidade Somática e Tecnologia Interna. Motrivivência Ano XXIII, Nº 36, P. 306-322 Jun./2011. Disponível em:

BOLSANELLO, Débora, Educação Somática: investindo na tecnologia interna. 2008. Disponível em: <www.movimentoes.com>. Acessado em: 24 dez. 2012.

BOLSANELLO, Débora, Corpo Livre e Corpo Possuído. 2008. Disponível em: <www.movimentoes.com>. Acessado em: 21 dez. 2012.

CANCLINI, Néstor García, [tradução: Luiz Sérgio Henriques] Diferentes, Desiguais e Desconectados – mapas da interculturalidade. Editora UFRJ: 2005.

CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GALVÃO, Gustavo. Mostra Nouvelle Vague Ontem e Hoje.  [encarte]. Centro Cultural Banco do Brasil: 2008.

GINOT, Isabelle, Para uma epistemologia das técnicas de Educação Somática. Disponível em: <http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/1446>.
Acessado em: 18/05/2013

MANEVY, Alfredo – capítulo: Nouvelle Vague, in: MASCARELLO, Fernando (org) – Historia do Cinema Mundial, Campinas, SP: Papirus, 2006, p: 221-252. (Coleção Campo Imagético).

NUNES, Benedito, Introdução à Filosofia da Arte.  São Paulo: Ática, 2006.

PINTO, Manuela Coimbra. GYROTONIC®: uma proposta de educação do corpo pela Educação Somática. 2012. Monografia (Licenciatura) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em:
Acessado em: 18/05/2013.

STRAZZACAPPA, Márcia, Educação Somática: seus princípios e possíveis desdobramentos. 1998. Disponível em:

sábado, 6 de abril de 2013

CULTURA & CIVILIZAÇÃO

Hellen Katiuscia de Sá


Palavras-Chave: Comunicação e Linguagem; Globalização; Educação Somática. 
        


À época dos antigos filósofos gregos o pensamento e conceito sobre Cultura eram simplificados em dois itens que o caracterizavam como tal (e através deles, a importância da Cultura era assimilada pela sociedade): os conceitos de Bom e Belo. Com a evolução do pensamento filosófico ao longo dos séculos, outros estudiosos destrincharam a ideia de Cultura anexando a analogia dos procedimentos de reprodução da Natureza, desse modo avançou-se da infância à adolescência no pensamento filosófico moderno com o acréscimo do raciocínio sociológico e antropológico sobre o tema.  Sendo assim, aos poucos a divisão do trabalho e os processos de produção foram catalogados como ferramentas que possibilitavam trazer à luz, a Cultura; e esta agora seria elevada ao nível de linguagem das civilizações unificadas pelos valores dominantes, ou seja, a Cultura funcionando assumidamente como ferramenta de manutenção social, como explica Establet (1966, apud Bauman, 2012):

Durante algum tempo pensou-se que na Antropologia e também na Filosofia, que a oposição cultura-natureza permitia fazer esta delimitação. Parecia que deste modo diferenciava a cultura, aquilo criado pelo homem e por todos os homens, do simplesmente dado, do ‘natural’ que existe no mundo. Esse modo de definir a cultura foi acompanhado por um conjunto de protocolos rigorosos de observação, registros de modelos de comportamentos de grupos, de costumes, de distribuição espacial e temporal, que ficaram consolidados em guias etnográficos, como o de George Peter Murdock. Mas este campo de aplicação da cultura por oposição à natureza não parece claramente especificado. Não sabemos por que ou de que modo, a cultura pode abarcar todas as instancias de uma formação social, ou seja, os modelos de organização econômica, as formas de exercer o poder, as práticas religiosas, artísticas e outras. É preciso perguntar se a cultura, assim, definida, não seria uma espécie de sinônimo idealista do conceito de formação social, tal como ocorreu, por exemplo, na obra de Ruth Benedict, segundo a qual a cultura é a forma que adota uma sociedade unificada pelos valores dominantes.

Quando o sujeito criativo compreendeu que sua criação dialogava com o exterior através da assimilação pelo seu semelhante acerca do que era produzido, o ser humano transcende interferindo na Natureza objetiva e subjetiva das coisas, e assim cria possibilidades linguísticas idiossincrásicas, pois recria e interfere nos valores já existentes e utilizados pela coletividade através do convívio social por meio dos códigos linguísticos e comportamentais subjetivados do sujeito – nesse ponto a compreensão de Cultura como ferramenta de rotinização e controle revela-se uma serva social que contribui para a difusão, manutenção e adaptação ao que já está vigente como tradição. Desse modo emerge junto à opinião etnocêntrica o termo “relativismo cultural” para explicar que o cultural difere do biológico quando o termo Cultura vem associado à ideia de criação coletiva de todos os homens em diversas civilizações, como esclarece Bauman.
A cultura compreendida como um sistema tende a ser controlada pelas regras desse sistema, e tudo que vier de fora para o sistema, terá a adaptação às regras já existentes como condição para sua admissão, ou seja, o próprio sistema sugere modificações que torne ‘ajustados' qualquer coisa alheia a ele, permitindo sua assimilação de acordo com as regras específicas do próprio sistema. Assim a assimilação é uma via de mão única: o sistema estabelece as regras de admissão, cria e projeta os procedimentos de assimilação e avalia os resultados de adaptação – e continua a ser um sistema enquanto for capaz de fazê-lo. Para os recém-chegados, assimilação significa transformação, enquanto para o sistema significa ramificação de sua identidade.

A separação entre criação e controle – a própria essência de alienação – está na base da realidade social e de sua imagem mental. O ato de criação é o único caminho aberto ao homem para controlar sua existência no mundo, ou seja, para concretizar o processo em duas fases de assimilação e acomodação. (...) A única forma que a pessoa pode consumar sua existência (que sem isso seria deformada e imperfeita) é utilizar-se dos recursos de controle acumulados na esfera pública. (BAUMAN, 2012, p.285-286).

Com a consolidação da Globalização, a Cultura compreendida como ‘identidade social’  de uma coletividade tende a transformar-se em ‘produto cultural’ que através do presente dinamismo do mundo globalizado – que desterra as distâncias geográficas e linguísticas –  interfere e mescla-se a diversos tipos de culturas, atraindo para si outras nomenclaturas e expressões da atualidade, tais como: culturas hibridas, mestiçagem, transplante cultural, pluralidade cultural. Esse estágio faz com que as culturas oriundas de lugares e sociedades distintas adquiram outros valores, leituras e utilização fora do que seria no seu território de origem. Não se trata de antropofagismo, pois não acontece uma subjugação, imposição e aniquilação de valores junto à sociedade produtora em questão, há apenas a aderência relativa de algo de uma cultura por outra, em termos de adaptação às necessidades da sociedade que transportou um item ou um comportamento endêmico alheio de seu próprio local. Junto a isso, observa-se que os valores de uso mudam de acordo com as necessidades e leituras de cada povo, ao entrar em contato e assimilar algo de outra civilização. Seguido esse evoluir, temos o termo ‘Diversidade Cultural’, que admite a coexistência pacifica de diversas manifestações culturais, muito embora, não necessariamente agregando-as a determinado processo de aderência à alguma sociedade:

Parece haver de fato um abismo qualitativo entre os símbolos comuns e a linguagem humana. A estrutura, portanto, mais que o uso dos símbolos, talvez seja o verdadeiro centro de gravidade da cultura como atributo universal dos seres humanos. (BAUMAN, 2012, p. 147).

A capacidade que o homem tem de produzir símbolos comunicativos, e transcende-los a demais receptores da mesma espécie em diferentes contextos, o torna o único animal na natureza capaz de produzir o que se compreende como ‘Cultura’. Portanto, a CAPACIDADE DE ESTRUTURAÇÃO SIMBÓLICA, mais do que os símbolos, talvez seja o verdadeiro centro de gravidade da cultura como atributo universal dos seres humanos, pois o que a humanidade produz enquanto cultura de si e de seu entorno, projeta os valores sociais inerentes ao termo cultura, como  assinala Jean Piaget (apud Bauman, 2012, p. 147):

Enquanto os outros animais só podem se alterar mudando sua espécie, o homem pode transformar-se transformando o mundo, e estruturar-se construindo estruturas; e essas estruturas são dele mesmo, uma vez que não são para sempre predestinadas a partir de dentro ou fora. Assim, a peculiaridade do homem consiste em ser ele uma criatura geradora de estruturas e orientada para a estrutura.

Essa escolha de valores sociais acontece de vento em popa com o tráfego de informações cada vez maior devido o advento e acesso à Internet pela população globalizada. O que há três décadas era lentamente possível em admitir: a transmigração cultural em níveis altíssimos –  na atualidade é uma realidade tão veloz, que mal pode ser acompanhada pelos seus próprios artificies. E esta mobilidade trás à tona o questionamento da intervenção dos recentes dispositivos que propiciaram a criação de novos diálogos culturais, sendo que o dispositivo mais importante deles – a Internet – depende de algo a mais para sua democratização: politicas econômicas e de inclusão digital que propiciem o ingresso às novas tecnologias pela população mundial dando-lhe igual poder de acesso:

A criatividade humana está em sua melhor forma quando o homem é livre – livre da necessidade imediata de garantir os meios de sua sobrevivência, livre da intensa pressão de suas necessidades fisiológicas. A ordem das coisas é exatamente o reverso daquela que está implícita na identificação da cultura e na sobrevivência adaptativa. Não apenas é falso que a criatividade humana seja solicitada pela pressão de um ambiente  hostil, mas também é verdade que essa criatividade só se desenvolve plenamente quando a pressão arrefece ou é suprimida. (...) A cultura humana longe de ser a arte da adaptação, é a mais audaciosa de todas as tentativas de quebrar os grilhões da adaptação como obstáculo fundamental à plena revelação da criatividade humana, (...) é um audacioso movimento a fim de que o ser humano se liberte DA necessidade e conquiste a liberdade PARA criar. (BAUMAN, 2012, p. 296-297).

Entramos agora na esfera socioeconômica e cultural, onde a produção cultural pode ser compreendida, segundo Néstor García Canclini, como o “conjunto dos processos sociais de significação” e/ou “como o conjunto de processos de produção, circulação e consumo da significação na vida social”. Desse modo, os processos de globalização exigem transcender as relações interculturais, devido o predomínio do valor comercial sobre os valores estéticos e a representação indentitária ao que se trafega sob o titulo de Cultura. Percebe-se agora que Cultura pode ser compreendida também como valor de status quando associada ao conhecimento erudito que habilita o individuo ter acesso ao alfabeto que dialoga com as diversas camadas e expressões de Cultura nas sociedades contemporâneas. Quem detém esses códigos culturais é assimilado pela coletividade como pessoa mais refinada e possuidora de bom gosto frente às massas – vemos então o estigma de Cultura anexado ao padrão monetário de uma classe social dominante e detentora do poder aquisitivo suficientemente abastado a ponto de investir em formação erudita sem se preocupar com suas necessidades mais básicas de sobrevivência; daí emergem: o gosto legitimo, gosto médio e gosto popular, como aponta Canclini, pautado nos estudos de Bourdieu:

As classes não se distinguem unicamente pelo seu diferente capital econômico. Ao contrário: as práticas culturais da burguesia tratam de simular que seus privilégios se justificam por causa das consequências de ter sido dissociado a forma e a função, o belo e o útil, os signos e os bens, o estilo e a eficácia. A burguesia desloca para um sistema conceitual de diferenciação e classificação a origem da distancia entre as classes. Coloca o motivo da diferenciação social fora do cotidiano, no simbólico e não no econômico, no consumo e não na produção. Cria ilusão de que as desigualdades não se devem àquilo que se tem, mas àquilo que se é. A cultura, a arte e a capacidade de desfrutá-las aparecem como “dons” ou qualidades naturais, não como resultado de uma aprendizagem desigual devido à divisão histórica entre as classes. (CANCLINI, (2005, p. 81).

Gosto legitimo, gosto médio e gosto popular. As diferenças entre níveis culturais emergem pela composição de seu publico, pela natureza da obra produzida (obras de artes, bens e mensagens de consumo) e pelas ideologias politico-estéticas que os expressam. O simbolismo bem-material, bem-utilitário e bem-capital cultural, coexistem dentro da mesma sociedade capitalista, quem consegue dominar a maioria dos campos e dominar suas linguagens e formas de analises, sabe administrar sua relação distante com as necessidades econômicas, com as urgências práticas. Compartilhar essa disposição estética é uma maneira de manifestar uma posição privilegiada no espaço social, estabelecer claramente a distancia objetiva e subjetiva em relação aos grupos submetidos a estes determinismos.
Logo, a Cultura observada no mundo contemporâneo (seja acessada pela Internet, produzida ou contemplada ao vivo), contém códigos linguísticos inerentes ao capital cultural, e esses códigos identificam o sujeito social que detém o treinamento intelectual e sensível para decifrá-los, agregando valores culturais e estéticos ao próprio  individuo, além de contribuir para que o sujeito desenvolva uma leitura e compreensão de mundo mais profunda e completa dos alicerces sociais. E desses valores emergem fatores que denunciam a divisão desigual do acesso à Cultura quando a compreensão dos recursos simbólicos não chega às camadas de baixo e/ou médio  poder aquisitivo. Essa desigualdade de acesso à Cultura mostra a essas classes sociais, que estão de certa forma, excluídas da sofisticação que leva alguns nichos ao topo das castas sociais; daí emergem as releituras e adaptações desses recursos simbólicos que não estão ao alcance da grande massa, por outros similares. Dessa feita, os que detêm e compreendem a linguagem e o peso estético dos produtos culturais tornam-se as referências para as classes subalternas. Esse é o lado desigual do acesso à Cultura como um todo, pois através da alienação intelectual das massas a mídia, o Quarto Poder e também os governos podem tranquilamente continuar ditando as regras e perpetuá-las através das ferramentas de regulação social, então:

Para Bourdieu, as classes se diferenciam, tal como no marxismo, pela sua relação com a produção, pela propriedade de certos bens, mas também pelo aspecto simbólico do consumo, ou seja, pela maneira de usar os bens, transformando-os em signos. (...) Uma grande parte das analises de Bourdieu sobre a constituição social do valor se ocupa de processos que ocorrem no mercado e no consumo: a escassez dos bens, sua apropriação diferencial por parte das distintas classes e estratégias de distinção que elaboram ao usá-los. (CANCLINI, 2005, p. 73).

            Entretanto, nem tudo é tão perverso assim. O “relativismo cultural” também emerge do vaivém do tráfego de informações através dos veículos de comunicação midiática e também pela Rede Internacional de Computadores, e justamente pelo diversificado conteúdo cultural fartamente transportado nesta, as relações de valores estabelecidas pelos produtos culturais são passiveis de serem redimensionados. Assim a autonomia dos grupos é tratada como problema politico, como explica Sennett (2003, apud Canclini, 2005): “não é simplesmente uma ação; também requer uma relação na qual uma parte aceite que não pode compreender algo da outra. A aceitação de que há coisas do outro que não se pode compreender dá, ao mesmo tempo permanência e igualdade na relação.” Assim, as manifestações populares encontram seu lugar e dialogam com a sociedade globalizada através de seus nichos culturais, e estas por sua vez, dialogam com o trafego de informações globalizadas, como sendo produtos culturais passiveis de valores de intercâmbios linguísticos e territoriais (identidade cultural) pela nomenclatura genérica de folclore. Sendo que o tradicional mescla-se com o moderno gerando outros ícones linguísticos e códigos culturais através de complexas interações ora cooperativas, ora conflituosas, porém geradoras de novos imaginários culturais presentes na atualidade.
Nesse interim, vivenciamos a sociedade da informação x sociedade do conhecimento. A primeira vale-se dos avanços tecnológicos e da industrialização da informação e de seu emprego, para reorganizar e otimizar os processos produtivos visando baratear os custos da produção, capacidade de processar, armazenar e transmitir dados. Já a sociedade do conhecimento depende de que todos os Países possam ter acesso à revolução tecnológica e informacional; aos trabalhos inteligentes; à tecnologização produtiva; à expansão e integração transnacional dos mercados; e à democratização da educação. Entretanto observam-se variantes nessa equação, como explica Hopenhayn, (2002, apud Canclini, 2005):

Depois de décadas de aplicação desses programas, vemos degradações da vida social que não podem ser resolvidas só com uma concepção informacional da sociedade. Na sociologia da educação, percebe-se que não há uma ‘simultaneidade sistêmica’ entre todas as dimensões do desenvolvimento, porque os educandos não são iguais, não têm idênticas possibilidades de aprender nem se interessam pelos mesmos conteúdos. Uma educação homogênea baseada numa informação universal e estandardizada não gera maior equidade nem democratização participativa. Se prestarmos atenção às múltiplas formas de pertencimento e coesão social, escutaremos uma pluralidade de demandas. São necessárias ‘adaptações programáticas aos grupos específicos’ (por exemplo, o bilinguismo em zonas multinacionais), buscar a pertinência curricular em função das realidades territoriais em que a escola se desenvolve, destinar recursos especiais às zonas de maior vulnerabilidade social e precariedade econômica.

Essas alternativas revelam a que ponto as comunidades sofrem as consequências dessa onda de diversidade cultural manifestada em maior, ou menor grau no mundo globalizado, e que não oferece tempo hábil para sua assimilação. Os atores sociais vêm sofrendo em sua reorganização interna para adequarem-se e/ou manterem viva dentro de si sua identidade cultural de referencia. Esses conflitos são observados como consequência ao que vem se criando em termos de produção cultural na atualidade. Assim, novos caminhos na educação foram surgindo para suprir a necessidade de se combater desequilíbrios emocionais e aflições do homem contemporâneo gerados pelo excesso de informações, estresse, pressão da economia capitalista, manifestações mecanicistas do sujeito provenientes da conduta imposta pelo meio mediante mudanças rápidas de comportamentos da coletividade; como sugere a Educação Somática:

Campo teórico-prático que reúne diferentes métodos cujo eixo de pesquisa e atuação é o movimento do corpo no espaço como uma via de transformação de desequilíbrios: mecânico, fisiológico, neurológico, cognitivo e/ou afetivo de uma pessoa. Os métodos de Educação Somática nasceram na Europa e na América do Norte entre os séculos XIX e XX. (...) Para os professores de Educação Somática, o corpo carrega em si o meio onde vive, bem como emoções, pensamentos, valores socioculturais, políticos e espirituais. Dentro dessa ótica, o corpo não é uma matéria inerte habitada por uma consciência: o corpo é ele mesmo um dos estados de consciência do ser humano. (...) Dentro do processo de aprendizagem em Educação Somática, a pessoa é levada a reconsiderar a posição que adota em seu trabalho; seus hábitos de vida; suas relações com o meio em geral; a percepção que tem de si mesma; sua vida afetiva, social, etc. (...) O termo somática tem origem na palavra grega soma, que significa corpo vivo. Segundo Hanna (1979), soma é o corpo subjetivo, percebido diretamente em “primeira pessoa”. E corpo é aquilo que se percebe em "terceira pessoa", ou seja, de fora. (ALMEIDA, 2008, p. 10).

Interessante observar que em tempos globalizados, onde tudo está interligado, conectado e influencia no comportamento do ‘outro’, um dos princípios básicos da Educação Somática é a compreensão do Homem Integral cujas ações individuais repercutem no meio onde ele vive. O que eu (ou você) produzir culturalmente, será inevitavelmente absorvido pelo próximo, e assim sucessivamente. Portanto, saber dialogar com as diferenças de raças, com a diversidade cultural, com a pluralidade imagética, buscando promover a democratização da informação, o acesso tecnológico, e inclusão digital tendo em vista um desenvolvimento social mais igualitário, será positivamente, um bom exemplo de Interconectividade Cultural e ajudará, por certo em termos gerais, nos relacionamentos socioculturais nos próximos anos. 


Hellen Katiuscia de Sá
Escrito em: 02, 03, 04, 05 e 06 de abril de 2013.


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# Referencias:
ALMEIDA, Claudia Fernandes de. EDUCAÇÃO SOMÁTICA DO CORPOTrabalho realizado em cumprimento às exigências do curso de Pós-Graduação em Terapia através do Movimento. Faculdade Angel Vianna. Rio de Janeiro, 2008.

BAUMAN, Zigmunt, ENSAIOS SOBRE O CONCEITO DE CULTURA, [tradução: Carlos Alberto Medeiros]. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

CANCLINI, Néstor García, DIFERENTES, DESIGUAIS E DESCONECTADOS – MAPAS DA INTERCULTURALIDADE, [tradução: Luiz Sérgio Henriques]. Editora UFRJ: 2005.