(Este texto é parte da Segunda Sessão de minha monografia de especialização em PROEJA-Artes, pela Universidade Federal do Pará, defendida em junho de 2015, sob o título de O DESPERTAR DA SENSIBILIDADE: A EDUCAÇÃO
SOMÁTICA NO ENSINO-APRENDIZADO EM ARTES NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS, sob a orientação da Profª Drª Maria Ana Azevedo).
2.1.
EDUCAÇÃO SOMÁTICA: O QUE É?
No final da década de 60 do século XX, Thomas
Hanna – professor PhD estadunidense e filosofo da Universidade da Flórida,
dedicou seus últimos trinta anos de vida a compreender os novos dados sobre o
funcionamento do corpo humano, levando em consideração uma abordagem holística
já aberta pelos pesquisadores autodidatas, que futuramente seriam denominados
como reformadores do movimento[1].
Por meio do seu conhecimento e sensibilidade
proveniente de sua formação em Filosofia, ele se apoiou em teorias e
pensamentos de outros filósofos, biólogos, sociólogos, etnólogos, psicólogos,
teólogos, como Darwin; Marx; Nietzsche; Kierkegaard; Piaget; Freud; e muitos outros pensadores do
século XX que igualmente revolucionaram a forma de compreender os problemas do
Homem contemporâneo. Em seu livro Corpos
em Revolta: uma abertura para o pensamento somático, Thomas Hanna (1972)
explica o caminho aberto pela humanidade até chegarmos a uma nova forma de
percepção, que ele denominou de “Educação Somática”.
O
pensamento filosófico norteador deste campo de estudos veio ao conhecimento
público em 1983 através de um artigo de sua autoria, na revista cientifica Somatics. Neste artigo ele afirmava que
a Educação Somática é
Consistia
em um processo relacional interno, onde a arte e a ciência agiam juntos
correlacionando a consciência, o biológico e o meio-ambiente, sendo todos os
fatores vistos como um todo, agido em sinergia. Entretanto:
[...]
historicamente, os métodos de Educação Somática começam a ser estruturados na
Europa e em seguida na América do Norte, um pouco antes da Primeira Guerra
Mundial. Seus criadores são, em sua maior parte, cientistas e artistas. Os
métodos são criados por ocidentais para ocidentais. Uma primeira diferença:
embora o campo da Educação Somática postule que o homem é um ser total – corpo,
mente e espírito – e que o corpo é indissociável da consciência, nenhum dos
métodos é ligado a um sistema religioso em particular como o hinduismo, a
vedanta ou o taoismo. Uma das especificidades da Educação Somática é que nenhum
de seus métodos pede do aluno a maestria da forma. A tônica das aulas de
Educação Somática é uma exploração dos movimentos propostos e não o
aperfeiçoamento de posturas ou coreografias fixas. (BOLSANELLO, 2008, p. 2-3).
Ainda
segundo Bolsanello (2005, p.100) a Educação Somática “é um campo teórico e
prático que se interessa pela consciência do corpo e seu movimento”. E como uma
área que promove a consciência corporal através da reeducação do movimento do
indivíduo enquanto observador de si mesmo, a Somática vale-se de diferentes
técnicas como as desenvolvidas por Pilates; técnica de Mathias Alexander;
Laban/Bartenieff; Feldenkrais; Ginástica Holística; Antiginástica; Body Mind Centering®, Yoga, etc, sendo
que cada uma possui seus próprios princípios e estratégias pedagógicas,
objetivando a reeducação do movimento, promovendo a subjetividade, a
inteligência do gesto e a singularidade do corpo em sua individualidade. Cada
técnica tem sua própria abordagem e aplicabilidade pedagógica, conforme a
finalidade e objetivos a serem trabalhados pelo professor de Educação Somática,
como observa Ciane Fernandes em seu artigo:
[...]
a prática é, em si mesma, o método de pesquisa, seu eixo principal e meio de
organização. Nesse contexto, o impulso criativo é bem mais importante para
delinear o desenvolvimento da pesquisa do que a hipótese ou o problema. Mas a
prática como pesquisa difere da pesquisa feita unicamente como parte de um
projeto artístico ou da coleta e troca de materiais para juntar informações e
criar uma rede de práticas, por exemplo. Prática como pesquisa é uma forma de
pesquisa acadêmica em que se busca descobrir e estabelecer novos conhecimentos
através da prática, com resultados, muitas vezes, em formas simultaneamente
práticas e teóricas. Através de abordagens exploratórias práticas,
estabelecem-se os percursos, desdobramentos e escolhas da pesquisa (inclusive
aqueles relacionados à coleta de dados, construção de rede de informações e
criação de obras artísticas).
(FERNANDES, 2015, p. 26)
Desde
seu surgimento o campo da Somática foi embasado e trabalhado junto à Filosofia,
Psicologia, Medicina e Artes Cênicas. Porém, com o passar do tempo e com outras
pesquisas na área da educação, novas abordagens pedagógicas de aplicação
combinando prática e teoria em diferentes áreas do conhecimento vem se
desenvolvendo. Desse modo, a Somática surge como um poderoso caminho para
reflexão de conteúdos e ideias acerca do macro e micropolíticas em diferentes
níveis de informações.
Quando
Thomas Hanna (1972) propôs explicar e apresentar ao mundo essa nova concepção
de viver e compreender o ser humano e tudo à sua volta, este professor
pesquisador nos fez ver que as mudanças externas provocadas pela própria
sociedade em curso, refletiam em nós de maneira a nos conduzir
inconscientemente às ações e sentimentos condicionados, pré-fabricados e/ou
mecanizados; isso vem acontecendo de forma mais evidente durante o período em
que nos encontramos agora, devido ao forte apelo massivo para o consumo de bens
materiais; consumo da informação através dos meios de comunicação, sobretudo,
ocasionado pela volaticidade do tráfego de notícias através da Web; pela banalização da violência; pela
superexposição da autoimagem em sites
de relacionamentos, etc.
A
essas comunidades atuais Hanna (1972) chamou de “sociedade pós-tecnológica”.
Segundo o raciocínio e observações dele acerca do comportamento dos jovens do
final dos anos 60 e no decorrer da década de 1970 do século XX, o que ele pôde
observar é que nunca antes esteve tão em evidencia o conflito entre gerações
visando a queda de comportamentos e pensamentos hegemônicos, com eclosões de
protestos sociais, onde a população jovem reivindicara maiores direitos de
expressão, repudio aos valores morais ultrapassados, (re)inventando novos
padrões comportamentais, linguísticos e culturais, tudo acontecendo em uma
velocidade assustadora.
Ainda
segundo Hanna, pelo fato de estarmos agora “livres” de atividades que antes nos
deixavam centrados em movimentos fixos e repetitivos, o corpo humano está
“solto” e a mente absorvida em novos ambientes virtuais, que nos remetem
instantaneamente ao nosso interior, aos nossos pensamentos, emoções e
imaginação.
O
que estamos experimentando na atualidade é nossa readaptação a essas mudanças
drásticas ocorridas no meio em que inventamos para viver e nos relacionar uns
com os outros. Por isso mesmo, valores morais, de comportamento e atividades
culturais também estão sendo modificados através da influência e conduta das
novas gerações, convidando as anteriores a experimentarem essa nova forma de
ver e sentir o mundo que nos rodeia.
Hanna
explica em seu livro Corpos em Revolta:
uma abertura para o pensamento somático, o que significa um
pensamento-comportamento – ações motivadas exclusivamente pelo desejo de
mudança – que vem sendo passado de geração em geração e entrado em choque com
os padrões morais estabelecidos, que esse choque de ideias, de emoções, e de
sensações novas está fazendo com que o homem do século XXI se volte mais para
si, não como um comportamento individualista, mas com uma visão individual de
si mesmo, ou seja, muitas pessoas estão num processo coletivo de
autoconhecimento porque agora têm “tempo livre” para isso.
As
tarefas mais corriqueiras que antes eram feitas e assimiladas de forma
mecanicista, agora prescindem de um “sentido” para que sejam realmente
desempenhadas. Este é o aspecto maior explorado em Educação Somática através de
seus exercícios e abordagens.
Percebi que tal fator vem ao
encontro com a proposta pedagógica para o ensino de EJA, pois o aluno desta
modalidade prescinde fazer conexões entre seu dia-a-dia e com o conteúdo
estudado em sala de aula para que o trabalho do professor atinja o esperado:
trazer de volta o interesse e envolvimento do educando para o cotidiano
escolar, comprometimento este que antes fora abandonado por esse aluno, devido
diferentes fatores pessoais.
É
importante observar que o público da EJA já tem uma “bagagem” cultural e visão
de mundo formada a partir de experiências fora do ambiente estudantil (muitas
vezes relacionadas ao trabalho e ao convívio social e cultural que não mais se
restringe ao círculo e regras escolares), e normalmente esses dados não são
aproveitados nas dinâmicas de ensino-aprendizagem pela escola tradicional,
fazendo com que o aluno não estabeleça links
entre o conteúdo estudado e seu cotidiano.
As propostas e abordagens de ensino-aprendizagem na EJA
procuram resgatar esse aluno através de uma dinâmica pedagógica que parte do
conhecimento do educando. Sendo assim, muitos alunos da EJA precisam de
estímulos para se colocarem em sala de aula, para se sentirem parte do que está
sendo abordado. No entanto, o que pude observar com nossa intervenção
pedagógica foi que os exercícios de Educação Somática proporcionaram essa
abertura de estímulos visando a interação dos educandos com o conteúdo
pedagógico trabalhado em sala a partir de seus próprios pontos de vista, como
será explicado em detalhes na terceira seção.
[1] Reformadores do Movimento: Termo
utilizado pela professora doutora Márcia Strazzacappa em um de seus artigos,
quando a mesma se refere aos pioneiros nomes de referencia que desenvolveram
algumas abordagens e técnicas em Somática utilizadas na atualidade.
2.2. A COMPREENSÃO HOLÍSTICA DO SER HUMANO
Durante séculos, o Homem fora norteado pelo
sistema de medidas cartesiano. Esse aspecto em muitos momentos ajudou a
humanidade no desenvolvimento da manifestação coletiva e manutenção do status quo nas sociedades crescentes. Porém,
com o passar do tempo essa forma de compreender a vida engessou o comportamento
coletivo na rígida visão do pensamento binário, visão não muito adequada para
aplicar-se na compreensão dos refinamentos da alma e nas novas percepções
subjetivas que os seres humanos desenvolveram ao longo de sua evolução até o momento
atual.
Desse modo o pensamento binário,
principalmente a partir do período pós-moderno, vem ocasionando atritos entre
conceitos tradicionais e alguns conceitos mais flexíveis, fulminando na eclosão
de conflitos principalmente oriundos de segmentos sociais que defendem
comportamentos e pensamentos de alguns nichos, como por exemplo: os direitos
dos homossexuais; dos negros; igualdade trabalhista entre mulheres e homens;
liberação da maconha; a questão do aborto; da eutanásia; pena de morte; dentre
outros, sendo que estas novas formas de compreensão da realidade se chocam com
o pensamento binário e rígido sobre a manutenção das normas sociais e
compreensão das coisas.
Já sob a ótica holística, o ser humano pode
ser compreendido através de um emaranhado perceptivo, cujos caminhos se
entrelaçam e se completam, como explica o termo:
Holismo (do grego holos que significa inteiro
ou todo) é a ideia de que as propriedades de um sistema, quer se
trate de seres humanos ou outros organismos, não podem ser explicadas apenas
pela soma dos seus componentes.
O sistema como um todo determina como se comportam as partes. O princípio geral
do holismo pode ser resumido por Aristóteles, na sua Metafísica, quando
afirma: O todo é maior do que
a simples soma das suas partes. A palavra foi criada por Jan Smuts,
primeiro-ministro da África do Sul, no seu
livro de 1926, Holism and Evolution. [...] vê o mundo como um todo
integrado, como um organismo. É também chamado não-reducionismo, por ser o oposto do reducionismo e ao pensamento cartesiano. Pode ser
visto também como o oposto de atomismo ou mesmo do
materialismo. De uma forma ou de outra, o princípio do holismo foi discutido
por diversos pensadores ao longo da História.
Nomeadamente pelo primeiro filósofo que o instituiu, para a ciência, que foi o
francês Augusto Comte (1798-1857) ao
sobrepor a importância do espírito de conjunto (ou de síntese), sobre o
espírito de detalhes (ou de análise), para uma compreensão adequada da ciência
em si e de seu valor para o conjunto da existência humana.[2]
A prática holística observada em Educação
Somática tem como base os estudos positivistas do filósofo Merleau-Ponty, que
em seu livro Fenomenologia da Percepção,
revisa o conceito de sensação e sua relação com o corpo e com o movimento do
mesmo, levando em consideração a interação do indivíduo com o meio, para que o
próprio Ser se compreenda e seja percebido por si em sua totalidade. Na versão
dos positivistas, a ciência considera que a sensação difere da percepção,
embora ambas se relacionem pela causalidade estímulo-resposta.
Segundo a Fenomenologia, a sensação é o
instrumento que traz luz à consciência de algo observado pela percepção da
pessoa. Perceber é o ato, a sensação é o instrumento para que o ato torne-se
consciente. Para a Gestalt a
percepção não funciona como algo exaustivo e total dos dados, e sim uma
compreensão provisória e incompleta dos fenômenos sensoriais. Assim, a
compreensão fenomenológica da percepção é amparada por conceitos da Psicologia
(Gestalt) dialogando com as Artes.
Para se compreender como a percepção funciona, antes é preciso entender como a
sensação atua em nós de maneira corpórea:
A sensação não é nem
um estado ou uma qualidade, nem a consciência de um estado ou de uma qualidade,
como definiu o empirismo e o intelectualismo. As
sensações são compreendidas em movimento. [...] Na concepção fenomenológica da
percepção a apreensão do sentido ou dos sentidos se faz pelo corpo, tratando-se
de uma expressão criadora, a partir dos diferentes olhares sobre o mundo.
(NÓBREGA, 2008, p. 142).
Por isso, os indicativos dos exercícios em
Educação Somática estão centrados no despertar do corpo através do estimulo dos
sentidos. Suas técnicas e abordagens metodológicas estão
focadas, a priori, para a reeducação
corporal pessoal, resgatando a unidade e identidade da pessoa, a partir de um
paradigma interno do sujeito. As abordagens são voltadas não para gerar um
padrão estético homogêneo entre os praticantes, e sim para ajudar na
compreensão de que as diferenças devem ser respeitadas e mantidas como uma
espécie de identidade individual de cada ser humano, pois existem várias formas
de perceber o mundo à nossa volta, e uma interfere na outra.
Assim,
a visão cientifica e filosófica da Somática considera o ser humano em sua
totalidade (mente, corpo, espírito, sentimentos, subjetividade, consciência),
sugerindo que as experiências pessoais são o veículo de entrada e saída para
que o sujeito compreenda a si mesmo e ao meio ambiente e social. Essa nova
atitude de reagir ao mundo ativa o senso crítico ao fazer a pessoa entender às
causas dos fenômenos que a levaram a determinada interação através de suas
ações com os fatos cotidianos e coletivos,
Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty esboça uma
fenomenologia existencial na qual vislumbramos a descrição de um sujeito que se
encontra sempre em “situação” em meio a um mundo concreto. A percepção nos
conduz a um mundo anterior ao conhecimento e aos prejulgamentos que dele se
possa fazer e, assim, desvela-nos um mundo carregado de sentido. Nesse mundo
originário, ser significa, sobretudo, ser com o corpo. O filósofo promove uma
mudança de enfoque, a passagem de um “espectador desinteressado” para um “homem
que percebe” e, assim, para um homem que experimenta a verdade no intervalo
entre si mesmo e o mundo, entre si mesmo e o outro. (MARQUES, 2006, p. 79).
Para
que essa visão do ser humano seja articulada, os fragmentos devem validar-se
desde que sejam percebidos através do todo, por isso a Fenomenologia trabalha
com a interdisciplinaridade, atribuindo conceitos tanto das Ciências Exatas,
quanto das Humanas, especialmente da Psicologia (Gestalt), rejeitando de vez o pensamento binário do cartesianismo,
para aproximar-se o máximo possível da compreensão holística do Ser.
Segundo
o conceito de corpo em Merleau-Ponty, a percepção adquire o caráter de
mobilidade quando o autor propõe que o conhecimento é gerado e modificado
através do movimento físico – que engloba também os atributos ocultos (alma,
pensamento, emoções) – como dados importantes no ato de perceber o mundo,
conforme observa Nóbrega (2008):
[...] a percepção do
corpo é confusa na imobilidade, pois lhe falta a intencionalidade do movimento.
Os movimentos acompanham nosso acordo perceptivo com o mundo. Situamo-nos nas
coisas dispostos a habitá-las com todo nosso ser. As sensações aparecem
associadas a movimentos e cada objeto convida à realização de um gesto, não
havendo, pois, representação, mas criação, novas possibilidades de
interpretação das diferentes situações existenciais. NÓBREGA (2008, p. 142).
Daí
os exercícios em Somática voltarem-se primordialmente para esse aspecto, pois
qualquer mudança estrutural interna reflete-se no exterior do sujeito, onde o
fator pensamento/imaginação está amplamente associado ao movimento corporal
durante os exercícios; assunto
que será abordado no tópico seguinte.
[2]
http://pt.wikipedia.org/wiki/Holismo
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