terça-feira, 21 de maio de 2013

A FLEXIBILIDADE DA PERCEPÇÃO COMO POSSÍVEL FERRAMENTA DE ANÁLISE HOLÍSTICA.

Hellen Katiuscia de Sá




Resumo: este artigo é uma introdução, onde propomos demonstrar a utilização de uma abordagem pedagógica empregada em Educação Somática – a flexibilidade da percepção – como possível ferramenta de analise holística de objetos artísticos cujo suporte é proveniente fora do âmbito físico-corporal, comumente abordado em Educação Somática. O objeto de analise escolhido para este exemplo foi o movimento cinematográfico Nouvelle Vague francesa.


Palavras-Chave: Pensamento Somático; Nouvelle Vague; Cinema;


Primeiramente faremos um pequeno apanhado de quando, como e porque surgiram os métodos de Educação Somática, que mais tarde tornaram-se um viés para solucionar insatisfações de bailarinos, coreógrafos, atores e diretores teatrais acerca de seu oficio enquanto artistas da cena.
O termo Educação Somática é relativamente recente; a expressão surgiu oficialmente pela primeira vez no artigo de Thomas Hanna numa publicação de 1983 da revista cientifica norte-americana Somatics, onde no mesmo artigo seu autor sugere uma definição para essas praticas tendo a arte e a ciência de mãos dadas para o mesmo fim: explorar e aceitar as relações subjetivas internas do sujeito (pensamentos e sentimentos) onde a consciência, o biológico e o meio-ambiente contribuem em conjunto para a assimilação de dados relevantes para construção do saber através do autoconhecimento, para esta abordagem a Educação Somática sinaliza ‘o corpo enquanto experiência’:

[...] corpo físico, ligado à psique, à alma, ao espirito e submetido a regras sociais e culturais. O corpo do qual provem e se expressam as sensações, é a um só tempo físico, psíquico, cultural, social e tem como modelo o corpo do outro. Culturalmente, o corpo é símbolo e signo, portador de mensagens, de atos físicos e psíquicos. Como produto social e paradigma de praticas culturais, nele a sociedade constrói significados e espelha-se.(SIQUEIRA, 2006, p. 59 apud PINTO, 2012, p.13)

Ainda que a expressão Educação Somática tenha sido mencionada em meados de 1983, há registros de anotações de pesquisadores autodidatas e artistas da cena que datam de antes da Primeira Guerra Mundial, e estas anotações formam os pilares dos princípios fundadores das abordagens em Educação Somática utilizadas ainda nos dias atuais. E há algo em comum nessas anotações. Em todas as abordagens inovadoras verifica-se que o ser humano é sempre assimilado e trabalhado como um Ser Total (o corpo material é indissociável da consciência), ou seja, leva-se em consideração a existência física, mental e espiritual do individuo como um todo, para absorção e construção do [auto]conhecimento.
Embora a aceitação do Ser Total nas abordagens dos exercícios em Educação Somática seja realidade, essa vertente não está atrelada a nenhuma corrente filosófica ou sistema religioso como o Hinduísmo, Vedanta, Taoísmo e/ou outra manifestação que abraça a concepção inseparável dos corpos material, espiritual e mental como expressão completa do ser humano.
Podemos citar alguns nomes dos “reformadores do movimento” – termo utilizado por Márcia Strazaccappa, aos que trouxeram à luz os fundamentos para os exercícios, estudos e abordagens somáticas. Esses reformadores jogaram-se no mar de possibilidades exploratórias do movimento, cujo estopim foi a busca da cura para suas enfermidades não contempladas pela medicina tradicional da época; como é o exemplo do alemão Joseph Pilates; do ator Mathias Alexander; Moshe Feldenkrais, dentre tantos. Todavia, reformadores mais recentes do movimento, não necessariamente foram guiados pela necessidade de superar alguma limitação psicofísica, mas acrescentaram novos dados baseados na experiência, àqueles já existentes.
O fato é que por meio de resultados positivos e satisfatórios através de tentativas concretas provenientes de exercícios corporais combinados com experiências sensoriais, surgiram dados empíricos que hoje servem como base para o pensamento fundador da unificação corpo/espirito importante e presente nas abordagens pedagógicas da Educação Somática; sendo que essas abordagens posteriormente e de modo gradativo, começaram a ser utilizadas por pessoas ligadas às Artes Cênicas (dança e teatro) em companhias de teatro e/ou dança contemporânea, na busca de maior expressividade dos artistas da cena, por exigências às novas linguagens na dança e/ou teatro na modernidade.
Tais exercícios de Educação Somática utilizados nas Artes Cênicas inauguram uma transformação na pedagogia da dança (principalmente), abrindo espaços para uma pedagogia “ativa”, exploratória, em oposição à uma ordem pedagógica clássica, rígida orientada apenas pelo modelo e pela forma mecanicista. Os exercícios somáticos dão abertura agora à valorização do SENTIR ao que se refere ao artista. Naturalmente essas abordagens pioneiras de se trabalhar o individuo influenciaram no repasse pedagógico dentro das faculdades de Cênicas, cujo material de estudo vêm interferindo beneficamente também nas áreas de Educação, Ensino e Saúde.
Ressaltando que os métodos propostos pela Educação Somática utilizam técnicas variadas, entretanto um eixo em comum nessa diversidade de abordagens é proporcionar ao individuo experiências que o estimulem à propriocepção e auto-regulação dos movimentos. Essas técnicas visam trabalhar não somente o aspecto material da pessoa, pois através da consciência corporal do individuo, o mesmo exercita e dilata sua tecnologia interna (acionando os corpos sensorial e mental) resultando ao praticante percepções mais aguçadas de si mesmo através de uma orientação holística interna, estendendo-se estas percepções de autoconhecimento para o ‘exterior’ através de seus atos, ou seja, para o meio ambiente onde o individuo vive e se relaciona.
Buscando embasamento na obra do filosofo Merleau-Ponty: Fenomenologia da Percepção, encontramos a compreensão do conceito de “corpo enquanto experiência”, de acordo com o que se propõe os exercícios de Educação Somática, correspondendo à necessidade de se trabalhar o Ser em sua totalidade holística, como explica a pesquisadora Débora Bolsanello:

A partir da mudança de paradigma estabelecido pelo pós-Positivismo e do questionamento epistemológico inaugurado pela Fenomenologia, a experiência humana e a subjetividade passam a ser validadas como fonte de conhecimento. Para os profissionais da área de Educação Somática, não é o corpo da pessoa que é abordado, mas a sua experiência através do corpo. Para tanto, o professor de Educação Somática utiliza as seguintes estratégias pedagógicas: a sensibilização da pele, o aprendizado pela vivência e a flexibilidade da percepção. (BOLSANELLO, 2005, p.98).

O que nos interessa de imediato aqui, é compreender a flexibilidade da percepção como abordagem pedagógica acionada no individuo através dos exercícios de Educação Somática. Senão vejamos: a execução das abordagens somáticas em sua prática acontece, sobretudo, por meio da doxa, cujo repasse das orientações orais norteia os indivíduos durante o desempenho dos exercícios somáticos; de modo que todo conhecimento empírico com registros escritos ainda são relativamente poucos, se comparados à aplicabilidade transversal dos exercícios somáticos às diversas áreas do conhecimento psicofísico. Esses registros funcionam mais a titulo de apontamentos técnicos e/ou como dados de pesquisa de campo para um desdobramento epistemológico sobre o tema, pois como na área da Educação Somática o conhecimento é atravessado pela ideia fundamental do ‘corpo teórico’ e/ou do ‘corpo enquanto experiência’, por onde a percepção do individuo é tecida, armazenada e posta para fora de maneira empírica, é desse modo que acontece o alcance maior dos exercícios físicos no corpo mental e espiritual do sujeito (caminho que aciona a flexibilidade da percepção), ou seja, por meio estritamente da práxis e da doxa.
A permanência da doxa ao longo dos anos se deve à sua extrema maleabilidade e capacidade de se modelar conforme o discurso de seus fazedores coletivos e deles anexarem falas outras à doxa. As opiniões da doxa se adaptam às circunstancias, e elas não advêm de uma instituição (tipo universidades e/ou escolas). Não são estudadas em livros. A doxa é repassada como um rumor perceptível apenas pela via sensível de ouvidos aptos para ouvir o ‘imperceptível’, algo como um “SENTIR O CONHECIMENTO” – uma paixão, onde somente o apaixonado é capaz de alcançar suas palavras...

Veremos assim, em relação ao que nos diz respeito – a atividade artística –, a doxa adaptar-se às novas condições da prática da arte, mesmo que pouco a pouco e com certo atraso em relação à própria pratica. (...) O trabalho da doxa é visto a partir de então como trabalho de coesão social; ela oferece a todos sua trama bem tecida, sem exceção, e esses ‘lugares’ apresentados por ela ao entendimento de todos nos tornam capazes de nos entendermos uns com os outros. (CAUQUELIN, 2005, p.163, 164).

Desse modo a relação entre as conexões de ideias e compreensões do individuo percebidas através do estimulo corporal estendem-se para além do físico, justamente devido ao exercício corpóreo acionar esses ‘lugares secretos’ da subjetividade do sujeito proporcionando a flexibilidade da percepção (espacial, interna e externa), o qual permite à pessoa traçar conexões de entendimentos profundos sobre os acontecimentos cotidianos, e dessa transversalidade de compreensões e conexões de ideias, o individuo alarga seu olhar perante os fatos e dados da conjuntura interior e exterior ao seu corpo (Soma), fazendo o sujeito alcançar que os fatos sociais interferem consigo de maneiras outras.
A flexibilidade da percepção então convida o individuo a enxergar e tecer juízos de maneira holística, ou seja, abre formas de avaliar os fatos levando em consideração a maioria dos lados em questão, para poder chegar a uma conclusão mais satisfatória que contemple uma gama maior de dados relacionados. Através do estimulo de sua tecnologia interna (percepção espacial; de equilíbrio; sensibilidade auditiva, olfativa, tátil; pensamento e imaginação) o sujeito instiga suas conexões de pensamento e análise, culminando na dilatação do entendimento e capacidade de interligar fatos gerais através da aceitação de que seu próprio Ser Total integra-se na Natureza como sendo um dos elementos componente dessa Natureza maior, ou seja, o sujeito torna-se mais responsável por suas ações e escolhas, pois não age apenas para si, mas para todo seu entorno social.
Assim a flexibilidade da percepção estimula o individuo compreender que ele tem uma natureza interna (a sua ‘verdade’) que deve se relacionar com o exterior de si verdadeiramente. Entretanto a pessoa necessita trabalhar para tornar real e ativa esta ‘verdade’, pois através da harmonia entre seus corpos (mental/emocional, espiritual e físico), ele pode externar quem de fato é, para que serve, para que veio ao mundo, para exercer a sua função em sociedade. Ele não se afasta de si mesmo e não se deixa alienar pelas seduções artificiais provenientes dos esquemas consumistas do Capitalismo, ou pelos discursos da política dominante, por exemplo.

Do neoplatonismo, a doxa mantém a ideia de que a arte participa do Ser e do Um, que seu valor é o mesmo concedido à alma, e que ao celebrar a arte, está se celebrando a Natureza e Deus. E também que a natureza constitui ao mesmo tempo o valor a respeitar e o objetivo a perseguir (é preciso trabalhar para ser natural); é sabido que a natureza (o dom) sem trabalho não vale nada, mas paralelamente, a doxa nos diz que o trabalho sem o natural é da mesma maneira nulo. A natureza indica o bom sentido, o caminho a seguir, ela é um dos principais lugares-comuns da doxa, mesmo e sobretudo, que não se consiga defini-la. (CAUQUELIN, 2005, p.168).

Partindo dessa premissa, de que a flexibilidade da percepção traz o individuo para perto da expressão de seu Ser Total – a sua ‘verdade’, a sua aptidão natural, (e por consequência tudo o que ele produzir norteado por esta consciência irá resultar a essência nas coisas produzidas, além é claro, de permiti-lo detectar o que está fora de seus lugares e enxergar paradoxalmente os caminhos que podem harmonizar as partes constituintes no Todo no seu universo cotidiano). A pessoa torna-se apta a inverter a ordem dos fatores dessa coesão que emerge através da ‘verdade’ das coisas – e tratamos aqui do dinâmico ‘jogo estético’ que pode, deve e está sendo jogado pelos sujeitos em sociedade a todo o momento; com a diferença que uns (mais que outros), percebem essa relação de liberdade expressiva genuína. O jogo estético confere a ATIVIDADE FORMADORA DO SUJEITO, que ordena através da matéria sensível, impregnada de sentimento, a própria Natureza da qual se desprendeu. E agindo consciente de si e de seus atos e de sua condição de ‘estar no mundo’, o sujeito transcende.

Para Schiller, o impulso lúdico se exerce acima das necessidades naturais da vida e independente dos interesses práticos. É uma manifestação de ordem espiritual, que se apresenta sobretudo como jogo estético. Sua função é conciliar a matéria, presente aos sentidos, com a forma, ato do pensamento, que parece excluir o que é material e sensível. O impulso lúdico joga com a Beleza, que Schiller define como forma ativa. A Beleza surge como convergência do subjetivo com o objetivo, do sentimento com a forma, que esse impulso determina. Força eminentemente livre, o jogo estético neutraliza tanto o rigor das formas abstratas, produzidas pelo intelecto, quanto a imediatilidade das sensações passageiras, e, “dando forma à matéria e realidade à forma”, liberta o homem do jugo da Natureza exterior e das exigências racionais exclusivistas. Por aí se vê que o jogo estético é uma afirmação do espirito, que pressupõe a liberdade. De fato, é preciso que o homem já tenha conquistado um alto grau de autonomia espiritual para jogar com a matéria e com a forma. (NUNES, 2006, p. 55).

Como sugere a filósofa, teórica e artista Anne Cauquelin em passagem em seu livro Teorias da Arte, o aspecto da ‘essência’, seja na obra de arte seja em qualquer outa coisa, dá-se através pela busca da Verdade, pois esta é a revelação do Bem e do Belo,  e se ‘belo’ é ser ‘bom’ e ser ‘verdadeiro’ em sua essência. Assim, partindo do raciocínio holístico, análogo ao proposto pela flexibilidade da percepção, cuja analise não descarta nenhuma hipótese para se chegar à conclusão, quando falamos da reviravolta que o cinema mundial viu e impactou-se através do movimento da Nouvelle Vague francesa, entramos no campo desta subversão da ordem de valores estéticos, culturais, econômicos e políticos.
         Conforme a flexibilidade da percepção nos convida a observar a maioria dos lados da questão para se chegar a uma conclusão mais abrangente (e para este proceder especifico eu chamo de ‘pensamento somático’), vamos tecer hipóteses sobre o porquê de jovens críticos de cinema, (que a principio não eram nem cineastas), subverteram a ordem das regras estéticas do audiovisual, culminando no movimento Nouvelle Vague.
Retomando a questão sobre a essência de que todo produto artístico para ser considerado verdadeiramente ‘arte’, tal fruto deve obedecer a um conjunto de regras para sua produção, e assim espelhar sua ‘verdade’, Partiremos desta primeira hipótese: o incomodo maior que os idealizadores da Nouvelle Vague francesa sentiram ao assistirem os filmes franceses da década de 1950.
Este grupo era formado por  jovens teóricos, críticos, pensadores e profundos estudiosos da história do cinema e de sua respectiva linguagem, portanto capazes de detectar esta falta de ‘verdade’ dentro do jogo estético dos filmes  produzidos em meados da década de 1950. Era como se a linguagem do cinema estivesse estagnada às formulas artesanais desde à época de seu nascimento. Jean-Luc Godard, Alain Resnais, André Bazin,  François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette e Eric Rohme – “Os Jovens Turcos”, como também eram apelidados pela mídia da época, externaram sua insatisfação com este descompasso estético dissociado de forma, conteúdo político e poético nos filmes na atualidade da década em que viviam. Primeiro gritou-se o manifesto de François Truffaut intitulado “Política dos Autores”; depois de um tempo, alguns rapazes do grupo arregaçaram as mangas e partiram para experimentos totalmente livres, subvertendo os paradigmas que regiam as regras (até então) que validavam o jogo estético do audiovisual.
Os idealizadores do movimento Nouvelle Vague queriam ressuscitar essa ‘verdade’ da linguagem cinematográfica. Seguindo o raciocínio das Teorias Injuntivas, que explica que para o objeto produzido ser considerado ‘arte’, ele dispõe de uma serie de regras para tornar-se verdadeiro dentro de uma premissa artística; podemos intuir que quando os Jovens Turcos se propuseram a subverter as regras da produção audiovisual em prol da evolução da linguagem cinematográfica através do que se intitulou como Nouvelle Vague francesa, eles automaticamente introduziram novos dados dentro do processo criativo no cinema, e por isso mesmo sugerem outro caminho para a ‘verdade’ do produto artístico audiovisual ser alcançada, posto que a Arte é algo subjetivo susceptível de regras dinâmicas, como explica Anne Cauquelin:

A arte é então ‘uma disposição de produzir (poiésis) acompanhada de regras’. Produzir é trazer à existência uma das coisas que são suscetíveis de ser ou de não ser e cujo principio de existência reside no artista. Nessa ótica uma produção é julgada por sua conformidade às regras ‘verdadeiras’ que foram seguidas. Caso tenha seguido as regras falsas terá falhado. O que importa ao teórico da arte é, então, enunciar essas regras  verdadeiras e, diante disso, avaliar os meios e a matéria da produção de acordo com os fins que ela se dispõe a alcançar. Daí o interesse em classificar os fins e ver como se articulam os gêneros e as espécies. (CAUQUELIN, 2005, p.59-60).

Nesse raciocínio, há farta literatura de teorias sobre a Arte, as quais expressam que o produto artístico nasce mediante regras inerentes ao seu processo de produção, para ser reconhecida como tal; regras estas detectadas e validadas pelos teóricos de arte ao longo da historia da civilização humana, porém vale lembrar que por tratar-se de uma produção mimética, a produção artística naturalmente adere em seu processo de realização fatores dinâmicos, abertos a novos canais expressivos inerentes à subjetividade do artista, e essa produção é alcançada através de erros e tentativas, ou seja, através também de uma pitada proveniente da práxis.

Se termos em mente que toda arte é produção acompanhada de regras, compreenderemos de imediato que mimesis não é cópia de um modelo, pálido decalque da ideia, afastada da verdade em muitos graus, como era o caso para Platão. Ela é antes de tudo fabricadora, afirmativa, autônoma. Se ela repete ou imita, o que repete não é objeto, mas um processo: a mimesis produz do mesmo modo como a natureza produz, com meios análogos, com vista a dar existência a um objeto ou a um ser; a diferença se deve ao fato de que esse objeto será um artefato, que esse ser será um ser de ficção. (...) O produto de ficção é tão real quanto o gerado pela natureza, apenas não pode ser avaliado de acordo com os mesmos critérios. Para a natureza, os seres que ela produz são como eles são: ele sabe o que faz, e o faz bem, suas regras de produção são imanentes (mesmo que aconteçam vez por outra, muito raramente, erros de programação – por exemplo, monstros por falta ou por excesso). Não acontece a mesma coisa com os seres de ficção; o que é o processo interior na natureza, está no artefato, submetido à exterioridade e, portanto, à contingencia. (CAUQUELIN, 2005, p.61-62).
           
Para se compreender como esse salto evolutivo da linguagem cinematográfica emergiu através do movimento Nouvelle Vague, invocamos a AUTONOMIA DA ARTE, que é a faculdade que dispõe a arte de não apenas romper com as outras espécies de discursos da razão (o que a autonomia promete), como ainda tornar ineficaz o funcionamento desses discursos.

[...] a obra ‘em si’ não existe realmente; ela se diz ‘obra’ por meio e com a condição de ser posta em determinada forma, de ser posta em ‘sítio’. Fora do sítio, que a teoria construiu e que as teorizações mantêm vivo, ela não é nada. São necessárias essas mediações, todo esse trabalho tecido incansavelmente pelo comentário, para que seja reconhecida como obra. Pois nenhuma atividade – e a arte não escapa dessa condição – pode ser exercida fora de um sítio que lhe dê seus limites, determine os critérios de validade e regule os julgamentos que serão tecidos a seu respeito. (CAUQUELIN, 2005, p.21)

Agreguemos à falta de eficácia do jogo estético do cinema nos anos anteriores à explosão da Nouvelle Vague, outro possível dado relacionado ao surgimento deste movimento cinematográfico: a conjuntura política do período de 1950 na França, pois:

Quando se trata de um objeto de arte, o processo de reconhecimento deve levar em conta o contexto sociocultural e politico – auxiliar indispensável ao reconhecimento  efetivo de um objeto de arte enquanto tal –, e sua constituição em ‘símbolo’ deve muito ao lugar que esse objeto ocupa no sistema de trocas econômicas e culturais. (CAUQUELIN, 2005, p. 120).

Na esfera da compreensão do RELATIVISMO CULTURAL, toda manifestação criativa que traz referencia histórica e social de um povo é aceitável enquanto cultura dentro do universo das civilizações humana como um todo, onde os discursos obedecem e são compreendidos dentro de cada nicho cultural onde foram engendradas.
A importância dos signos – segundo investigações profundas de Pierre Bourdieu – engloba os valores materiais: de uso e de troca; e valores imateriais: simbólico e afetivo, estes valores são amplamente explorados no discurso cinematográfico da Nouvelle Vague francesa, anexando a esta expressão artística uma larga abrangência comunicativa ao publico que frequentou o cinema a fim de ver os filmes provenientes desse novo dialogo audiovisual. Muito embora, esses signos se apresentassem de maneira notoriamente inovadora, aparentemente desorientada e de certa forma dinâmica, exigindo de seu espectador novas maneiras de decodificar tais relações de compreensão linguística cognoscíveis, cujo publico não estava habituado (nem experimentado anteriormente tais conexões de compreensão do discurso audiovisual), e por isso mesmo os filmes nascidos sobre a alcunha da Nouvelle Vague geraram profundo estranhamento tanto no publico quanto da crítica especializada em meados de 1958, como a qualquer pessoa ainda hoje que contemple pela primeira vez esses discursos.
          Vale salientar que tais ‘quebras’ ou subversões das regras linguísticas em determinado discurso artístico é semelhante aos saltos evolutivos de espécies na Natureza. O surgimento da Nouvelle Vague no universo do audiovisual assemelha-se ao que se propõe o relativismo cultural que abraça (e interfere) igualmente o conjunto dos processos sociais de significação (e/ou) o conjunto de processos de produção, circulação e consumo da significação na vida social; portanto, admitem a existência dos discursos linguísticos explorados através da Arte, a partir do momento em que estes discursos dialogam em algum grau com seu receptor (o publico), seja no seu aspecto sensorial, seja no dinamismo comportamental.

        Por hora, estes foram os primeiros recortes tecidos utilizando a Flexibilidade da Percepção como ferramenta de análise holística, sobre alguns lados de questões que poderiam ter corroborados para a explosão criativa, que a história do Cinema conhece sob a alcunha de Nouvelle Vague.



Hellen Katiuscia de Sá
Escrito em: 18, 19, 20 e 21 de maio de 2013.

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Referencias:

BOLSANELLLO, Débora, A Educação Somática e os Conceitos de Descondicionamento Gestual,  Autenticidade Somática e Tecnologia Interna. Motrivivência Ano XXIII, Nº 36, P. 306-322 Jun./2011. Disponível em:

BOLSANELLO, Débora, Educação Somática: investindo na tecnologia interna. 2008. Disponível em: <www.movimentoes.com>. Acessado em: 24 dez. 2012.

BOLSANELLO, Débora, Corpo Livre e Corpo Possuído. 2008. Disponível em: <www.movimentoes.com>. Acessado em: 21 dez. 2012.

CANCLINI, Néstor García, [tradução: Luiz Sérgio Henriques] Diferentes, Desiguais e Desconectados – mapas da interculturalidade. Editora UFRJ: 2005.

CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GALVÃO, Gustavo. Mostra Nouvelle Vague Ontem e Hoje.  [encarte]. Centro Cultural Banco do Brasil: 2008.

GINOT, Isabelle, Para uma epistemologia das técnicas de Educação Somática. Disponível em: <http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/1446>.
Acessado em: 18/05/2013

MANEVY, Alfredo – capítulo: Nouvelle Vague, in: MASCARELLO, Fernando (org) – Historia do Cinema Mundial, Campinas, SP: Papirus, 2006, p: 221-252. (Coleção Campo Imagético).

NUNES, Benedito, Introdução à Filosofia da Arte.  São Paulo: Ática, 2006.

PINTO, Manuela Coimbra. GYROTONIC®: uma proposta de educação do corpo pela Educação Somática. 2012. Monografia (Licenciatura) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em:
Acessado em: 18/05/2013.

STRAZZACAPPA, Márcia, Educação Somática: seus princípios e possíveis desdobramentos. 1998. Disponível em:

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